Por Rodrigo
Martins, na Carta Capital
Em pouco mais de um ano, Michel Temer conseguiu um improvável feito: reduzir
o País à condição de colônia, submetida a uma nova metrópole.
Diante da impossibilidade físico-temporal de retroagir no tempo, seu projeto
guarda certas singularidades em relação ao modelo do Brasil Colônia, mas a
arquitetura é a mesma.
Com um mercado doméstico fragilizado e abastecido por produtos manufaturados
importados, a produção orienta-se quase exclusivamente para o mercado externo.
Como no passado, os produtos de exploração são as commodities agrícolas e
minerais. As adaptações impõem-se por força das atuais circunstâncias. Os juros
da dívida pública somam-se aos valiosos artigos oferecidos ao mercado.
A metrópole não é mais Portugal e, sim, as multinacionais e o sistema
financeiro. Em vez da mão de obra escrava, o trabalho assalariado precarizado, o que igualmente inviabiliza
o consumo interno. No lugar dos poucos representantes da Coroa portuguesa, um
Estado mínimo, ausente na prestação de serviços essenciais à sociedade.
A análise é do economista João Sicsú, ex-diretor de Políticas e Estudos
Macroeconômicos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e professor
do Instituto de Economia da UFRJ.
“Do congelamento dos gastos públicos por 20 anos à reforma trabalhista
recém-sancionada, todas as iniciativas do governo Temer levam à conversão do
Brasil em uma plataforma exportadora de produtos básicos, pois o mercado
doméstico está sendo dilapidado”, afirma.
“O barateamento da mão de obra não traz qualquer vantagem competitiva para
quem produz para o consumo interno, pois todos os empresários terão esses custos
reduzidos e, a médio prazo, o rebaixamento salarial afetará ainda mais o poder de compra das
famílias.
Somente quem produz para o mercado externo terá algum benefício. O País, por
decisão da elite política e financeira, entrará na divisão do trabalho
globalizado como uma colônia moderna.”
A dependência do mercado
internacional torna-se cada vez mais evidente. Em dois anos de recessão, 2015 e
2016, o PIB brasileiro encolheu 7,2%. Festejado pelo ministro da
Fazenda,Henrique Meirelles, o crescimento de 1% verificado no primeiro trimestre
deste ano deve-se, sobretudo, à supersafra agrícola e às exportações, que
cresceram 4,8%.
Sem isso, a variação do PIB ficaria próxima de zero, pois houve queda no
consumo das famílias (-0,1%), do governo (-0,6%) e do investimento (-1,6%).
Até mesmo a geração de empregos formais tem sido salva pelo boom do agronegócio. Entre demissões e contratações, foram
gerados 67,3 mil postos de trabalho com carteira assinada no primeiro semestre
de 2017. O campo criou 117 mil vagas e compensou o mau desempenho de setores
como comércio (123 mil vagas fechadas) e construção civil (33,1 mil vagas a
menos).
Com 14,2 milhões de desempregados, segundo o último balanço divulgado pelo IBGE, o Brasil vê o seu mercado
doméstico evaporar. Do último trimestre de 2014 até o primeiro de 2017, o
consumo das famílias contraiu-se cerca de 10%. O problema tende a se agravar com
a precarização da mão de obra.
Sancionada por Temer sem vetos, a reforma trabalhista altera 117 artigos da
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e fere de morte todo o arcabouço
jurídico de proteção laboral. Com as brechas abertas na legislação, empregados
formais podem ser substituídos por falsos autônomos e por falsas pessoas
jurídicas, eximindo os tomadores de serviços do pagamento de direitos como
férias e 13º salário, além de afastar a ameaça de processos na Justiça do
Trabalho.
Legalizou-se, ainda, um extenso leque de vínculos empregatícios
precários, assentados em contratos de trabalho temporário, parcial e
intermitente. “Os Programas de Demissão Voluntária abertos em bancos públicos e
privados são os primeiros sintomas dessa reforma”, diz Ana Cláudia Bandeira
Monteiro, vice-presidente da Associação Nacional dos Procuradores do
Trabalho.
“Agora, as empresas têm várias opções para baratear o custo da mão de obra.
De nada adianta estabelecer uma quarentena para evitar que o funcionário seja
demitido e recontratado pela mesma empresa. Com tantos desempregados, há um
enorme exército de reserva.”
Enquanto o poder de compra do trabalhador
está ameaçado, a capacidade de investimento do Estado está comprometida desde a
aprovação da Emenda 95, no fim do ano passado. Até 2036, o aumento dos gastos federais está restrito à variação da inflação.
Em outras palavras, a União não poderá destinar mais recursos para projetos
de infraestrutura ou para áreas historicamente subfinanciadas, como saúde e
educação. Ademais, a contração de despesas públicas reduz ainda mais a demanda
interna.
“É uma camisa de força. Ainda que a população
eleja, nas próximas eleições, um governante comprometido com um programa de
desenvolvimento nacional, ele estará amarrado à regra.
Precisaria ter maioria qualificada no Parlamento para alterar a
Constituição”, lamenta Eduardo Fagnani, professor do Instituto de Economia da
Unicamp. A medida ameaça o futuro do País. O congelamento de gastos inviabiliza,
por exemplo, o cumprimento da meta de universalizar o atendimento das crianças e
adolescentes em idade escolar até 2020, como prevê o Plano Nacional de
Educação.
Atualmente, 2,8 milhões de brasileiros entre 4 e 17 anos estão fora da
escola, segundo o Censo Escolar.
“Além da questão quantitativa, há o desafio de melhorar a qualidade da
educação pública, o que implica melhor formação dos professores, investimentos
em material didático alinhado com as novas diretrizes curriculares e também a
valorização da carreira docente”, alertou o filósofo Renato Janine Ribeiro,
ex-ministro da Educação, quando o Congresso debatia o tema.
Na Saúde, o
congelamento de gastos ganha contornos dramáticos. Estima-se que a população idosa passará
de 16,8 milhões em 2016 para 36,1 milhões em 2036. Além da transição
demográfica, há uma mudança no padrão de enfermidades.
A partir de 2030, projeta a Organização Mundial da Saúde, as principais
causas de mortalidade no mundo não serão mais as doenças cardiovasculares ou
cerebrovasculares, e sim as neoplasias (câncer), que têm um custo de tratamento
muito superior.
“Enquanto o quadro epidemiológico se torna mais complexo, enquanto a
população envelhece velozmente, enquanto a pressão da sociedade pela
incorporação de novas tecnologias se agudiza, o governo acena com um futuro de
graves restrições do ponto de vista econômico para a saúde”, resume o médico
sanitarista José Gomes Temporão, ex-ministro de Lula, em recente artigo
publicado no site de CartaCapital.
Presidente do Conselho Nacional de
Saúde, Ronald Ferreira dos Santos alerta para a progressiva diminuição de
recursos para a área. “No decorrer de 20 anos, o porcentual de gastos públicos
vai cair de 3,8% para 1% do PIB”, afirma. “Vai ferir de morte o SUS. Se a medida
não for revertida, podemos desistir da ideia de um sistema universal de
saúde.”
Atualmente, há seis ações no Supremo Tribunal Federal questionando a constitucionalidade da
Emenda 95, apresentadas pela Associação dos Magistrados Brasileiros, pela
Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação, pela Federação Nacional dos
Servidores e Empregados Públicos Estaduais e do Distrito Federal e por três
partidos políticos: PDT, PSOL e PT.
Em parecer entregue à Corte na segunda-feira 17, a Defensoria Pública da
União pediu para participar dos processos na condição de amicus curiae. A
entidade sustenta que a medida promove um “desmantelamento do Estado”, além de
inviabilizar o direito à saúde e à educação pelo estrangulamento de
recursos.
Bode introduzido na sala pelo
próprio governo, a Emenda 29 tem sido utilizada como instrumento de chantagem
para a açodada aprovação da reforma da Previdência.
Sem ela, vaticina o ministro do Planejamento, Dyogo Oliveira, a União não
teria condições de pagar todas as aposentadorias e pensões a partir de 2020 –
ultrapassaria o teto de gastos em 2,6 bilhões de reais.
Segundo a proposta de Temer, o trabalhador deve acumular 25 anos de
contribuição para ter acesso à aposentadoria parcial, e 49 anos para ter direito
ao valor integral. A exigência, associada à liberação das terceirizações e de
outras modalidades de trabalho precário, pode excluir grande parcela da
população, alerta Fagnani, da Unicamp.
“É preciso considerar que esse trabalhador viverá diversos períodos de
inatividade. Portanto, esse período de contribuição pode representar, na
verdade, 35, 40 anos de serviço, dentro e fora do sistema formal.”
Na
modalidade de trabalho intermitente, para citar um exemplo, o empregado é
convocado para trabalhar com três dias de antecedência, momento no qual é
informado da jornada a ser cumprida. Ele pode aceitar ou não a proposta, e
receberá apenas pelo período efetivamente trabalhado, em horas.
O tempo de inatividade, no qual fica à disposição do contratante, é
desconsiderado. Ao cabo, esse funcionário sequer tem a garantia de que
trabalhará o suficiente para amealhar um salário mínimo. Caso isso aconteça, ele
terá de complementar do próprio bolso a contribuição previdenciária
correspondente ao mínimo. Sem isso, o mês trabalhado não contará no cálculo da
aposentadoria.
Em relatório apresentado na sede das Nações Unidas no
início de julho, um grupo de mais de 20 organizações da sociedade civil, que
monitora o cumprimento dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, alerta para o
risco de pauperização dos brasileiros em um cenário marcado pelo elevado
desemprego, pela supressão de direitos trabalhistas e pelo congelamento dos
gastos públicos por 20 anos. Três anos após o Brasil sair do Mapa da Fome da
ONU, a insegurança alimentar volta a ameaçar as famílias mais pobres, emendam as
entidades.
Ex-ministra do Desenvolvimento Social de Dilma Rousseff e uma
das responsáveis pela drástica redução dos índices de extrema pobreza e
insegurança alimentar nos últimos anos, Tereza Campello alerta, ainda, para a
redução do número de beneficiários do Bolsa Família. “Quando Dilma Rousseff
deixou o cargo, em maio de 2016, o programa beneficiava 13,8 milhões de
famílias.
Hoje, contempla 12,7 milhões. Ou seja, mais de 1 milhão de famílias, ou 4
milhões de brasileiros, ficaram sem esse complemento de renda”, observa. “Tenho
notícias de que as pessoas batem na porta da assistência social, mas enfrentam
muitos obstáculos. Fala-se em 550 mil inscritos à espera de receber o benefício.
Acredito que a fila é muito maior, e tem gente sendo desligada.”
No fim de junho, o governo decidiu suspender o
reajuste do Bolsa Família que havia prometido. O aumento de 4,6% no benefício
não cabia no Orçamento, por gerar um impacto de 800 milhões de reais em 2017,
justificou o ministro Osmar Terra, atual titular da pasta do Desenvolvimento Agrário. Duas semanas depois, Temer sancionou
uma lei com reajustes nos salários de auditores fiscais, médicos peritos,
técnicos do Banco Central e outras categorias de servidores – um impacto de 8
bilhões de reais, dez vezes mais do que seria gasto com o Bolsa
Família.
Não é a primeira vez que o governo favorece castas privilegiadas
do funcionalismo. Em 29 de dezembro, Temer reajustou o salário mínimo de 880
para 937 reais, abaixo do valor autorizado pelo Congresso no Orçamento da União:
945 reais.
Um dia depois, Temer publicou no Diário Oficial da União a Medida Provisória
765, a prever reajustes salariais para oito categorias de servidores federais,
incluindo auditores fiscais e diplomatas, com vencimentos iniciais superiores a
19 mil reais.
A concentração de riqueza e a pauperização dos
trabalhadores inviabilizam qualquer projeto de desenvolvimento com soberania,
alerta Sicsú. “Para não ser dependente da demanda externa, é indispensável ter
um mercado interno forte, com milhões de consumidores com poder de compra.
Infelizmente, o Brasil reduziu-se, por decisão política, ao papel de uma mera
colônia, que de tempos em tempos sofrerá os abalos causados pela variação do
preço das commodities.”
Comentários
Postar um comentário