Por Paulo Moreira Leite, no 247
Em três meses fora do Planalto, Dilma Rousseff consumou uma vitória essencial
para o futuro de nossa democracia, ao ganhar o debate político sobre a natureza
de seu afastamento. Numa virada respeitável, a situação pode ser resumida assim:
para além do círculo de políticos, empresários, meios de comunicação e
jornalistas diretamente interessados numa derrota histórica do projeto político
construído em torno de Luiz Inácio Lula da Silva, pode-se dizer que não há quem
não esteja convencido, dentro e fora do país, de que sua saída da presidência
representa um golpe de Estado, inaceitável pela própria natureza.
Iniciado na última quinta-feira, o confronto entre testemunhas de acusação e
defesa completou com vários detalhes técnicos o desmonte das principais teses
dos adversários construídas para justificar o afastamento. Para completar, a
presença de Dilma no Senado, na segunda-feira, 29 de agosto, marcou um momento
de histórico. A presidente fez uma apresentação soberba. Dispondo de uma tribuna
pública que jamais lhe foi oferecida para apresentar seu ponto de vista, teve
clareza e competência para demonstrar seus pontos de vista e derrubar, uma a
uma, as alegações de seus adversários, desde o início empenhados em encerrar
aquela jornada delicada para seus propósitos no prazo mais rápido possível.
Mas hoje, quando o debate sobre o destino de Dilma ingressa na fase de
deliberação final, as condições de temperatura e pressão no Senado estão longe
de refletir aquilo que se pode ver e ouvir pelo país inteiro, nos últimos
dias.
As chances de a presidente vir a ser afastada definitivamente seguem mais do
que enormes. Isso ocorre apesar da clareza da argumentação contrária, da solidez
dos dados apresentados, da desmoralização contínua do governo interino, incapaz
de disfarçar o caráter regressivo de um projeto que jamais seria vitorioso caso
fosse submetido a debate numa campanha eleitoral. Não é difícil explicar essa
diferença entre o que se sabe e o que pode acontecer em breve, talvez nas
próximas horas.
Iniciado na AP 470, em 2005, o massacre brutal do Partido dos Trabalhadores e
seus aliados, que inclui a perseguição permanente a Lula e longas prisões de
lideranças políticas e empresários vinculados ao esforço de construir uma
economia voltada para o mercado interno, são a dificuldade real para a reversão
de uma situação desfavorável. A derrota é anterior, extraparlamentar, num
processo permanente e avassalador que atinge de frente aquele que é de longe o
mais importante movimento político orgânico nascido no final da ditadura de 64,
mas que agora se encontra sem músculos, sem voz e dividido, como se confirmou
pela fraquíssima presença popular nos últimos protestos o afastamento da
presidente.
A democracia brasileira, duramente construída na resistência ao regime
militar, já foi derrotada, fora do Senado. A saída de Dilma pretende, apenas,
dar aparência legal a uma situação de fato. Daí o pânico com a palavra
golpe.
Neste mundo que se encontra além da política e sua lógica, além do Supremo
Tribunal Federal e seus sorrisos amarelos, a resistência final a um golpe de
notório, já escancarado, tornou-se uma questão de caráter.
É isso o que acontece em situações extremas e desiguais, muito difícil de
enfrentar num absurdo universo fechado de personagens que só ouvem a si mesmos,
em horas nas quais se usam as regras da democracia para destruir a própria
democracia e se pronunciam argumentos morais para acobertar um infinito
cinismo.
Quando as instituições falham, resta o caráter, ensinou o professor Wanderley
Guilherme dos Santos, numa de suas aulas únicas sobre as diversas crises
brasileiras. Em dezembro de 2015, data em que Michel Temer deu o braço, em
público, para aliar-se a Eduardo Cunha e articular o impeachment que deveria
salvar a pele de tantos, Wanderley escreveu:
“Quando as instituições falham, o caráter prevalece. Há quem nunca fraudou a
lei por falta de oportunidade e há os que resistiram apesar dos convites das
circunstâncias. Em crise, o caráter de cada um é desnudado. De vários políticos
já conhecemos o material de que são feitos, uns de primeira, outros de segunda
qualidade. Não há coletividade humana que escape ao vírus da safadeza. A
esperança é que não se propague.”
Richard Sennet, um dos mais agudos estudiosos das sociedades contemporâneas,
registrou numa obra seminal, “A Corrosão do Caráter” que vivemos um tempo de
“capitalismo flexível”. Com isso o mestre se refere a um “ sistema que é muito
mais do que uma variação sobre um velho tema. Enfatiza-se a flexibilidade.
Atacam-se as formas rígidas burocracia e também os males da rotina cega. “
Neste
novo momento da evolução humana, distante do sistema em que a maioria possuía a
proteção de leis trabalhistas e de um estado de bem-estar, pede-se agilidade e
abertura “a mudanças de curto prazo,” continuamente favoráveis a riscos que
dependem “cada vez menos de leis e procedimentos formais.”
Escritas já no prefácio da obra, estas palavras são um ponto de partida para
se compreender o processo que pode levar nossa democracia ao despenhadeiro.
Antes da flexibilização da exploração dos assalariados, dos programas que
defendem o miserável e mesmo dão alguma garantia a classe média, é preciso
flexibilizar a democracia.
O objeto do estudo de Sennet, vale assinalar, são os trabalhadores
precarizados pelo Estado mínimo, incapazes de assumir compromissos duradouros
para organizar suas famílias, defender suas famílias e suas comunidades em
função de um sistema de laços frouxos, que não oferece um horizonte de longo
prazo e dificulta a escolha de “caminhos a seguir,” pois é impossível saber
quais riscos “serão compensados.”
Nos últimos dias de agosto de 2016, uma guerra política que terá
consequências de primeira grandeza sobre o Brasil e várias gerações de
brasileiros e brasileiras, mudou de natureza.
Os fatos agora estão aí, a frente de todos, desde a conspiração no TCU até a
arquitetura de Eduardo Cunha na Câmara. O essencial: Dilma não poder ser
condenada porque é inteiramente inocente das acusações que lhe foram feitas. Ao
contrário do que diz a tese de irresponsabilidade fiscal, mostrou-se
excessivamente responsável ao lidar com as contas do governo, lembrou Luiz
Gonzaga Belluzzo. Não pode ser condenada por uma lei que não existia no momento
em que os fatos ocorreram, repetiu José Eduardo Cardozo. Não pode ser vítima de
regras que se aplicam em regimes parlamentaristas num país onde vigora o
presidencialismo, sublinhou o constitucionalista Geraldo Prado. Nelson Barbosa
calou os interlocutores com respostas claras e definitivas sobre assuntos
variados. A lista poderia ser maior.
Elaborada como uma resposta necessária à consciência democrática dos
brasileiros, que há muito tempo não aceitam qualquer mentira que lhe apresentam,
aquilo que era um pretexto revela-se uma farsa. Deveria ser cancelada com um
pedido de desculpas. Mas isso dificilmente irá ocorrer, por uma razão muito
simples.
Pessoas de caráter são aquelas que defendem princípios mesmo quando eles não
convêm a seus próprios interesses. Não se contentam em brindar a democracia em
coquetéis. Não saúdam a liberdade para impressionar jovens mocinhas. Não têm
como primeiro mandamento ético ficar de bem com donos de jornal e com
jornalistas.
São personagens como o empresário Rubens Paiva, o usineiro Teotonio Vilella,
a quatrocentona Terezinha Zerbini, o arcebisco Paulo Evaristo Arns. Bustos de
bronze na memória de 200 milhões de brasileiros.
Os demais, cedo ou tarde, imploram para serem esquecidos.
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