Gosto muito de cães e gatos, e eles também parecem gostar de mim. Tenho o maior respeito pela maneira como esses animais vivem e se relacionam com os humanos. Da mesma forma, não tenho dúvida sobre a importância da luta pela preservação do meio ambiente, pela preservação da biodiversidade, pela luta contra os interesses mesquinhos dos grandes laboratórios. Mas uma pergunta não quer calar nas minhas reflexões: e os seres humanos, que lugar eles ocupam nesse cenário? Sou de um tempo, e reconheço que estou fora de moda, que a grande preocupação era salvar a humanidade, os seres humanos, lutar contra a desigualdade, a injustiça social, os regimes ditatoriais. Sonhávamos com uma sociedade justa e solidária. Talvez o leitor mais jovem possa achar isto uma preocupação egoísta e autocentrada. Mas vamos por partes, somos animais e pertencemos tanto à natureza quanto os frequentadores das pets shops, os escorpiões, os ratos e os morcegos. E fazemos parte do meio ambiente, como a água, o ar, as árvores e os animais, os amados e os peçonhentos. Tenho toda a solidariedade com a bióloga gaúcha presa na Rússia por sua luta pelo planeta. A propósito, tenho também solidariedade por todos os seres humanos presos por lutarem por suas causas.
Mas há algo muito errado em tudo isso. O mundo se emociona e se revolta porque cães de raça estão sendo usados para experiências científicas, mas me pergunto: será que essas mesmas pessoas se emocionariam e se mobilizariam com milhões de pessoas em campos de refugiados pelo mundo? Com os desesperados que morrem a poucos quilômetros de Lampedusa, em embarcações precárias fugindo da fome e da guerra? Será que essas pessoas se mobilizariam contra o comércio de seres humanos e de órgãos humanos ao redor do mundo? Será que se revoltariam se soubessem que pessoas em campos de refugiados e em prisões estivessem sendo usadas como cobaias? Será que abrimos mão de salvar os seres humanos e estamos nos escondendo sob a capa da salvação de animais de estimação e de um planeta abstrato, porque é mais cômodo e não ameaça nossos privilégios cotidianos?
Precisamos recolocar a discussão em outro patamar: nenhum animal tem de sofrer por qualquer razão, principalmente porque a indústria cosmética está querendo criar uma nova marca de sabonete. Nenhuma folha de nossa floresta amazônica pode ser retirada sem nosso completo conhecimento, para alimentar a indústria dos fármacos do norte global. Mas, tendo isto sido combinado, nenhum ser humano tem de sofrer a humilhação de não ter um chão que lhe acolha, uma lei que lhe garanta direitos, um Estado que lhe garanta uma vida digna, com cultura, educação e saúde. Nós, seres humanos, cães, ratos, árvores, rios, estamos habitando uma bolinha insignificante em uma galáxia insignificante em um universo desconhecido, sejamos, pois, pelo menos, nós, a quem coube na cadeia da evolução a consciência da vida e da morte, menos fúteis.
Por Celi Pinto, doutora em Ciência Política, professora do Departamento de História da UFRGS
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