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Na democracia, mesmo que não concordamos, temos que respeitar a opinião das outras pessoas

Por Luiz Antônio Araújo, Jornalista


Prezado padre Lauro Trevisan: o senhor não me conhece, mas já ouvi falar muito do senhor. Lembro de sua Livraria da Mente e, depois, de seu Teatro da Mente na Rua Tuiuti. Nunca entrei em nenhum dos dois, mas tenho certeza de que o senhor não terá sentido falta do gurizote cabeludo que eu era. Também nunca li seus livros. Não me orgulho disso. Há livros demais e vida de menos. Nesse aspecto, sou como Mario Quintana diante do mapa da Capital: "Sinto uma dor infinita / das ruas de Porto Alegre / Onde jamais passarei".


Esta é uma carta sobre Santa Maria e sobre livros, e o senhor me permitirá uma última reminiscência. Quando comecei a me dar conta do mundo à minha volta, a melhor livraria da cidade era a Globo. Não se tratava, claro, de uma megalivraria como as de hoje nos shoppings. Era uma livraria-papelaria, com um andar térreo dedicado a material escolar e de escritório e um primeiro piso reservado, aí sim, aos livros.


Foi na Globo que tive notícia de obras que me acompanhariam pela vida inteira, todas em edições da casa: O Continente, Ficções, A Miséria Humana, No Caminho de Swann, Mrs. Dalloway, Lutando na Espanha. Havia também um gênero particular que chamávamos de best-sellers: Richard Bach, Sidney Sheldon, Harold Robbins. E os livros pornô, embalados em plástico: Adelaide Carraro, Cassandra Rios e outras menos solicitadas. Não esqueçamos do desfile dos latino-americanos com seus títulos imbatíveis: Cem Anos de Solidão, Bom Dia para os Defuntos, Tia Júlia e o Escrevinhador, O Século das Luzes, Histórias de Cronópios e Famas.


Mas não se lia de tudo. Longe disso. Às vezes, um murmúrio percorria a cidade: "Vão apreender o livro do Rubem Fonseca". E dê-lhe correr até a Globo para tentar garantir um exemplar da coletânea de contos Feliz Ano Novo. "Proibiram o livro do Mourão." Sorte de quem conseguisse se antecipar e comprar as memórias do general Olympio Mourão Filho. Confesso ao senhor: aquela correria tinha um lado divertido, e eu achava que fizesse parte da ordem natural das coisas. Só mais tarde me ocorreu uma dúvida: quem decidia quais livros seriam apreendidos e quais continuariam nas prateleiras? Mas nessa época eu já estava ficando grande.


Tenho lido, padre Lauro, que alguns cidadãos tomaram medidas a fim de que sua mais recente obra, Kiss _ Uma Porta para o Céu, seja recolhida das livrarias. Entre outras razões, sustentam que o livro os atinge em sua condição de familiares de vítimas da tragédia que comoveu Santa Maria e o mundo. Não quero julgá-los, nem ao senhor. Gostaria apenas de, modestamente, vir a público defender meu direito de ler seu livro, se e quando quiser. Defendo até mesmo o direito de encontrar seu livro nas livrarias, ainda que não queira lê-lo.


Meus motivos, padre Lauro, são muito simples. Quando ouço falar em Bombril, não lembro apenas de uma marca de lã de aço. Quando leio a palavra "balneário", não me vem à mente o nome "Camboriú", e sim "Lermen" e "Pinhal". Depois do 27 de janeiro, a expressão "Santa Maria" adquiriu um novo significado para milhões de pessoas, eu incluído. Tudo isso sugere que palavras nos fazem, sim, lembrar e, muitas vezes, sofrer. A grande ilusão de alguns é que o silêncio imposto possa resolver o problema.


Onze dias antes de o senhor entrar na 1ª Delegacia da Polícia Civil de Santa Maria para depor sobre seu livro, morreu nos Estados Unidos um advogado chamado Edward de Grazia. Em 1955, os Correios americanos apreenderam uma edição rara da peça Lisístrata, de Aristófanes, porque, no entendimento do diretor do órgão, Arthur E. Summerfield, tratava-se de obra "obscena e lasciva". De Grazia rebateu dizendo que o que era obsceno para Summerfield poderia ser "puro como uma montanha de neve para outros" e venceu a causa. Passou a vida comprando brigas em nome da liberdade de expressão. Desejo sinceramente que um pouco do espírito de Edward de Grazia siga com o senhor.

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